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Novas tecnologias em veículos e os impactos em seguros auto

31/07/2023

Marcelo Barreto Leal  

Bacharel em Direito e especialista em Direito, Mercado e Economia-PUCRS; Mestre em Direito da Empresa e dos Negócios-UNISINOS; Doutorando em Direito Político e Econômico-UP Mackenzie; Especialista en Derecho de Seguros-Universidad de Salamanca-España; Presidente do GNT Seguros Auto-AIDA; Presidente do GIT Seguros Auto-CILA-AIDA.  Advogado-Sócio da Torelly Bastos Advogados Associados. 

Resumo: O objetivo do presente artigo traz a contextualização das diversas novidades tecnológicas embarcadas nos veículos automotores, desde sua conectividade até a cada vez mais intensa opção por motores elétricos em detrimento dos a combustão. Esse novo cenário traz impactos diretos nos seguros de automóveis, que passam a apresentar novos riscos, dos pontos de vista quantitativo e qualitativo, o que está a exigir uma nova leitura por parte dos players seguradores, eis que imperiosa a oferta de novas opções para um mercado em importante mudança.  

Abstract: The purpose of this article is to contextualize the various technological novelties embedded in motor vehicles, from their connectivity to the increasingly intense option for electric motors over combustion engines. This new scenario has a direct impact on auto insurance, which starts to present new risks, from a quantitative and qualitative point of view, which is demanding a new interpretation on the part of insurance players, as it is imperative to offer new options for a market undergoing major change. 

Introdução: 

As diversas novidades tecnológicas embarcadas nos veículos automotores, desde sua conectividade até a cada vez mais intensa opção por motores elétricos em detrimento dos a combustão traz impactos diretos nos seguros de automóveis, que passam a apresentar novos riscos, dos pontos de vista quantitativo e qualitativo, o que está a exigir uma nova leitura por parte dos players seguradores. A oferta de novas opções para um mercado em importante mudança é imperiosa. 

Por um lado, os veículos conectados passam a ser cada vez mais realidade no contexto brasileiro. De se comentar que a conectividade dos veículos traz uma série de oportunidades à cadeia de serviços proporcionada por esse mercado, e, muito especialmente, ao setor de seguros.  

Nesse contexto, cada vez mais a opção pela motorização elétrica é constante por parte das montadoras, bem como dos consumidores que demandam este tipo de produto por eficiência de consumo e uma alegada ausência de produção de poluentes. 

1. Os veículos conectados 

Oportuno comentar que a conectividade é o primeiro passo para a efetiva atualização do mercado automotivo do país, cujos passos seguintes são a semiautonomia, o que já se verifica em algumas ofertas e, adiante, a autonomia, experiência ainda não vivida em território brasileiro. 

Em relação ao tema, existe uma escala criada pela SAE, Sociedade dos Engenheiros Automotivos, que separa essa autonomia em seis níveis distintos, que vão de SAE 0 a SAE 5, com base em quão independente o sistema é.1 

A categorização funciona da seguinte forma: 

SAE 0 – Sem automação 

Os veículos nessa categoria são, basicamente, a grande maioria do que vimos em toda a história dos carros até hoje: todo o seu controle depende de um humano, desde sua aceleração e direção, monitoramento do ambiente, respostas dinâmicas à situações de risco, além da ausência de modos de condução distintos.2 

SAE 1 – Assistência ao Condutor 

O primeiro nível de automação é atingido quando o sistema consegue ajudar o condutor com algumas atividades simples, como é o caso da manutenção de aceleração – através do uso de funções como Cruise Control não-adaptativo, que ainda exige que o motorista direcione o veículo e freie quando necessário – e também de modos de condução distintos que podem ser escolhidos manualmente para se adaptar a uma situação distinta.3 

SAE 2 – Automação Parcial (Atualmente) 

É o que temos atualmente em termos de automação já popularizado no mercado: o sistema é capaz de efetuar por conta própria algumas funções do veículo, como acelerar e frear de acordo com o limite estipulado pelo condutor, através do Cruise-Control adaptativo. Em alguns casos, pode também direcionar ou ajudar o motorista a manter sua direção, mas é necessário um humano no controle em caso de situações de risco. Geralmente reservado para o uso em estradas. 

Para que isso aconteça, os veículos atuais vêm equipados com um conjunto de radares e sensores que fazem um mapeamento de objetos em torno do veículo para um monitoramento passivo, ou seja, que não é capaz de reagir.4 

SAE 3 – Automação Condicional  

O nível 3 já consiste em veículos que podem se movimentar por conta própria tanto na parte de aceleração e direção quanto no monitoramento ativo do ambiente. Isso permite que o motorista foque completamente em outras atividades, mas eventualmente terá que assumir o controle em situações de risco. Um exemplo desse nível de automação é o Autopilot da Tesla, em sua versão que também é capaz de dirigir em ambientes urbanos. Aqui a exigência já passa a ser um conjunto mais robusto de sensores, como scanners a laser, sensores ultrassônicos e sistemas de radar – como os LIDARS, que já existem nos veículos que vem sendo testados –, que conseguem monitorar e reproduzir o ambiente ao redor do veículo para que o sistema consiga tomar decisões mais complexas de condução.5 

SAE 4 – Automação Alta  

Nesse nível, a expectativa é que o motorista possa até dormir ao longo do trajeto, já que praticamente todas as atividades serão feitas pelo sistema autônomo do veículo, inclusive habilidades reativas em situações de risco mesmo quando o motorista humano não for capaz de responder à solicitação para assumir o comando do automóvel. Nesse estágio, a expectativa é que todos os sensores e câmeras já sejam capazes de fornecer dados muito mais precisos e o sistema também contará com informações fornecidas pelos serviços de navegação para definição de rotas e de manobras de condução – o que exigirá um altíssimo nível de conectividade constante do veículo e comunicações do tipo V2V (Vehicle-To-Vehicle) e V2I (Vehicle-To-Infrastructure).6 

SAE 5 – Automação Completa  

O último nível extingue a necessidade de um condutor humano (em alguns casos até impedindo essa possibilidade), com absolutamente todos os controles e responsabilidade pela direção sendo feitos pelo sistema autônomo do veículo. O motorista se torna mais um passageiro e pode dedicar todo o seu tempo dentro do carro para fazer outras atividades.7 

É difícil especificar quais são as reais exigências do nível SAE 5 em termos de estrutura veicular, mas o que se espera é que a parte de sensores esteja extremamente avançada e que a conectividade já tenha se tornado algo orgânico no dia a dia das pessoas.8 

O fato é que a nova realidade traz uma série de mudanças na contratação e execução dos contratos de seguros de automóveis. Para tanto, os desafios são muitos, a começar pela adesão dos consumidores aos pacotes de conectividade, que representam um custo a mais na manutenção dos veículos. Certamente, uma política de incentivos corretos deve ser planejada pela indústria automotiva, bem como o setor de seguros, que na condição de mercado beneficiado, pode também contribuir para o avanço da expansão da tecnologia embarcada em veículos. 

Para o mercado de seguros, um dos mais beneficiados, o potencial analítico da Internet das Coisas permite que diversas informações do veículo e do motorista possam servir para avaliar riscos, oferecer precificações personalizadas e até identificar fraudes. E com o monitoramento em tempo real, as seguradoras podem ficar cada vez mais proativas, alertando para problemas mecânicos no veículo, identificando comportamentos de risco e trajetos suspeitos, além de acionar resgate ao detectar acionamento dos airbags.9 

Da mesma forma, as montadoras estão correndo para agregar as tecnologias Machine-to-Machine (M2M) na linha de produção e coletar dados para oferecer novos serviços aos clientes. Os dados podem ser analisados para identificar avarias, trocas de óleo, agendar revisões e prever a necessidade de recalls antes mesmo dos veículos apontarem problemas, mitigando gastos que podem chegar a centenas de milhões de dólares. E com as informações armazenadas em nuvem, os próprios clientes podem acessá-las e acompanhar trajetos, acionar aplicativos e muito mais, ou seja, toda a cadeia produtiva é favorecida.10 

Além de montadoras, esse movimento da Internet das Coisas também está mudando o modo como fornecedores de peças e serviços do setor automotivo lidam com a informação. No caso da fabricante de pneus Continental, por exemplo, foram desenvolvidos produtos com sistema de sensores embutidos, alertando para os níveis de calibragem e desgaste dos pneus, transmitidos em tempo real para o motorista, o que uma vez mais, pode beneficiar seguradoras na prevenção de sinistros.11 

Todavia, nem tudo são flores. Recentemente, não são poucas as notícias a respeito de acidentes vinculados a veículos autônomos, o que faz com que tal tecnologia seja questionada a respeito de seu grau de eficiência. 

Veículos da marca Tesla equipados com software de direção autônoma se envolveram em 273 acidentes nos Estados Unidos, de acordo com um relatório publicado nesta quarta-feira (15) pela Agência de Segurança no Tráfego Rodoviário dos Estados Unidos (NHTSA), que investiga o sistema de assistência ao motorista da fabricante americana.12 

O relatório se concentra em veículos com o chamado software Level 2, um programa que pode acelerar ou desacelerar o carro e girar o volante, se necessário, mas requer um motorista atento e pronto para retomar o controle se houver necessidade a qualquer momento. A agência destacou, porém, que o mesmo acidente pode ter sido alvo de vários relatórios e que os números publicados nesta quarta “não são dados significativos em termos de segurança”. Para ser contado, um acidente deve ocorrer quando o assistente de direção foi ativado em algum momento durante os 30 segundos anteriores. Outro critério é que o incidente tenha a ver com um pedestre ou veículo de duas rodas (bicicleta ou motocicleta), ou quando uma pessoa foi levada ao hospital, ou causou a ativação do sistema de airbag ou exigiu a remoção do veículo. 

Entre os outros 11 fabricantes listados, apenas a Honda foi alvo de um número significativo de relatórios (90).13 

2. A adoção dos motores elétricos 

Outra tendência no mercado automotivo é a adoção de motores elétricos em detrimento dos a combustão. As justificativas para essa mudança são o menor grau, em tese, de produção de poluentes, bem como a anunciada escassez de combustíveis fosseis. 

Contudo, o que se percebe é que os parâmetros de produção da energia elétrica de cada país são fundamentais para avaliação do grau de emissão de resíduos poluentes. 

Há estudos que demonstram que o carro abastecido a etanol, por exemplo, é menos poluente que o carro elétrico que circula na Comunidade europeia, exatamente pelos motivos acima expostos: o modo de produção de energia elétrica, especialmente, quando se está a falar de usinas termoelétricas, ainda muito difundidas e em operação no velho continente.14 

No Brasil, as montadoras ainda divergem sobre qual deve ser o modelo hegemônico no futuro, mas apostam em soluções elétricas e movidas a biocombustíveis, como o caso dos veículos híbridos. Fatores como o alto custo da transição tecnológica, que exige volumes de investimentos vultuosos, e a incerteza sobre a demanda atravancam os planos do setor. Mesmo assim, montadoras estão correndo atrás das novas tendências. Duas fabricantes, Toyota e Caoa Chery, já produzem modelos híbridos que utilizam etanol. Outras fabricantes, como a Stellantis (dona da Jeep, Peugeot, Citroën e outras marcas), a Volkswagen e a Nissan já anunciaram planos para produzir esse tipo de automóvel no futuro. Ainda indecisa, a Renault estuda o desenvolvimento do modelo. Em direção contrária a General Motors aposta nos elétricos e rejeita os híbridos. Essas companhias estão de olho em um filão de mercado: o de veículos menos poluentes. Se para a Europa e Estados Unidos, os elétricos parecem a melhor alternativa, especialistas apontam que os híbridos a etanol podem fazer mais sentido por aqui, já que a produção local do biocombustível é ampla e acessível.15 

Diante de tal cenário, importante a constatação de novos riscos. Recentemente nos Estados Unidos, no final de 2021, um carro elétrico Tesla Model 3 entrou em combustão durante o abastecimento de sua bateria na garagem do dono. Por sorte, não houve pessoas feridas e o que causou o incêndio ainda está em processo de investigação. A notícia foi publicada através do canal de televisão 6ABC. De forma similar, em julho de 2021 foi registrado outro caso de explosão. O jornal Washington Post publicou, via web, a notícia de incêndio de um Tesla Model S, que também pegou fogo dentro da garagem do proprietário, na Califórnia (EUA). De acordo com a matéria, esses riscos têm gerado preocupação, visto que algumas fabricantes de carros elétricos alertaram proprietários para evitarem o carregamento dos veículos com ausência de vigilância, ou até mesmo deixá-los guardados inteiramente carregados. Companhias de automóveis como Audi, General Motors e Hyundai chegaram a fazer, nos últimos anos, um recall de carros elétricos, justificando que possuíam riscos de combustão.16 

Além dessa questão, o mercado de carros elétricos encara outro desafio: aumentar a durabilidade das baterias sem que haja grandes passos de recarga. Um dos notáveis empecilhos é o grande custo de desenvolvimento de algo viável quanto à fabricação e à comercialização. Em média, no Brasil, carros elétricos podem ser 100% abastecidos num período de 1 a 4 horas. Considerando que dura menos de 5 minutos para encher um tanque com combustível fóssil, a diferença ainda é bem grande. Exemplificando que a tecnologia de carregamento pode se desenvolver, tem-se o modelo de veículo Tesla SuperCharger, que promete ser carregado, em 15 minutos, o necessário para rodar 200 milhas (321 km). Indiscutivelmente, é um setor do mercado automobilístico extremamente promissor, para o qual as empresas devem ficar atentas.17 

Dessa forma, surgem oportunidades ao mercado segurador como a oferta de produtos de garantia estendida, já encontrados como opção. Todavia, há um desafio ainda não enfrentado, qual seja, o descarte das baterias após o encerramento de sua vida útil. Aqui, uma outra grande oportunidade também aos players seguradores, especialmente, diante da regulação do setor para, notadamente, Circular SUSEP n.º 666, de 27 de junho de 2022, dispõe sobre requisitos de sustentabilidade, a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradores locais. 

A questão a ser debatida será a conveniência de convivência de várias tecnologias de motorização convivendo concomitantemente. Os custos de transação, provavelmente, aumentariam e, muito provavelmente, o modelo adotado pelos mercados mais ricos tornariam ainda maiores as distâncias tecnológicas em relação a mercados emergentes. 

3. O contrato de seguro como instrumento de gestão de risco em seu modelo tradicional 

Diante do novo cenário, o propósito de analisar a atividade securitária tradicional no país, de se destacar que a estrutura empresarial de sustentação da atividade do seguro tem início nos cálculos atuariais, responsáveis pela determinação dos valores necessários à formação do fundo mutual e do montante da contribuição do segurado.18 

Não se pode negar que viver significa estar exposto a riscos, à aleatoriedade. Esta característica resta ainda mais evidente quando se refere ao mundo dos negócios e à realidade da vida cotidiana. A insegurança se apresenta como um dos efeitos colaterais da industrialização e da complexificação das relações sociais contemporâneas, tornando ainda maior a necessidade de segurança em relação ao patrimônio. Trata-se, segundo o sociólogo Ulrich Beck, de uma Sociedade do Risco, pois, em seu entendimento, vive-se em um mundo fora de controle19

Nesse contexto, o risco é o primeiro fator que se deve ter em mente, ao se pensar o contrato de seguro: risco de acidentes, de infortúnios, de perdas no exercício de atividade econômica, enfim, risco de sofrer prejuízos de ordem material. Mas esse risco não se confunde com a incerteza, quando ele for considerado como estatisticamente mensurável, quantificável. Nas palavras de Ernesto Tzirulnik, Flávio de Queiroz Cavalcanti e Ayrton Pimentel, o risco, ao contrário da incerteza, que se constitui em “[…] um sentimento humano imensurável […], é um dado social objetivo20”. 

Interessante a contribuição de Abel Copo, ao dizer que o contrato de seguro não existe sem o risco, eis que ambos constituem uma relação biunívoca essencial. Avança em seu raciocínio dizendo que o seguro evolui em razão das mudanças dos riscos, muito especialmente, fruto do desenvolvimento tecnológico da sociedade.21 

Fernando Galiza define os riscos puros como aqueles que só produzem perdas. Esses riscos podem ser retidos, quando o agente econômico os assume como eles são, sem modificá-los, mas adotando medidas de redução, que não alteram a probabilidade de perda, mas a reduzem em razão das medidas de cautela22.  

Analisado o contrato de seguro a partir de um cenário geral da definição de contrato apresentada por Enzo Roppo como as vestes de uma operação econômica, verificadas e descritas suas especificidades e idiossincrasias, de fácil constatação se tratar de elemento essencial da operação de seguros. Para a continuidade e avanço do proposto no presente trabalho, importante avançar para a noção de risco a partir do seguro e sua lógica econômica e atuarial. 

É nesse sentido, que o mercado se mostra desafiado, eis que a experiência pretérita a partir de veículos completamente diferente dos atuais pouco se aproveitará para o desenho de necessários novos produtos. 

Nesse contexto, a atual estrutura regulatória vigente no país, notadamente, a Circular SUSEP n.º 639, de 09 de agosto de 2021, colabora em muito, pois deixa aos players uma possiblidade imensa para a criação de novos modelos contratuais, para uma correta roupagem às novas necessidades. 

4. Princípio da Boa-fé como Mecanismo de Eficiência na Esfera dos Contratos de Seguro 

Até pouco tempo, o princípio da boa-fé viabilizou o contrato de seguro em suas mais variadas modalidades, inclusive, o auto. 

A boa-fé contratual, especificamente, traduz-se no dever de cada parte agir de forma a não fraudar a confiança da contraparte, alcançando, como adverte Karl Larenz, outros participantes da relação jurídica23

Tal dever se dirige, em primeiro lugar, ao devedor, com o mandado de cumprimento de sua obrigação, atendo-se não só à letra, mas também ao espírito da relação obrigacional, ao comportamento que o credor possa razoavelmente esperar dele. Em segundo lugar, dirige-se ao credor, com mandado de exercício do direito que lhe corresponde, atuando em conformidade com a confiança depositada pela outra parte e a consideração altruísta que ela possa pretender, segundo a classe de vinculação especial existente. Em terceiro lugar, dirige-se a todos os participantes da relação jurídica em questão, com mandado de se conduzirem de forma a corresponder em geral ao sentido e à finalidade desta vinculação especial e a uma consciência honrada24

Parece agora pertinente mencionar as palavras de Luciano Timm, para quem, sem a coação estatal, é improvável que os contratantes cumpram sempre suas obrigações. O direito contratual pode então interferir na relação entre as partes, de forma a alterar o equilíbrio, levando à cooperação mútua.25 

A lei, ao impor a quem se obrigou, a necessidade de cumprimento do compromisso assumido, está apenas protegendo, de acordo com o interesse geral, a confiança que o credor legitimamente tinha de que seu interesse particular seria satisfeito. Em relação a uma desejável delimitação, nem a lei, nem os contratos podem prever e regular tudo26

No tocante à legislação, uma pormenorizada regulamentação dos contratos seria incompatível com a autonomia privada. Por isso, em cada negócio jurídico da vida real, fica sempre em aberto um largo campo, no qual a conduta a que estão obrigados os interessados só pode ser determinada com recurso à lealdade que eles se devem mutuamente, fundada na confiança.27 

A boa-fé objetiva tem potencialidade, nas palavras de Judith Martins-Costa, para atuar não como um vago cânone de ordem ética, um standard de cunho moral impreciso e incerto, mas como verdadeiro elemento de identificação da função econômico-social efetivamente perseguida no contrato28

O imperativo de agir em conformidade com a boa-fé está presente nas negociações que precedem ao contrato, na sua conclusão, interpretação e execução, chegando, inclusive, a justificar a extinção de obrigações, com resolução de contratos. A sua violação na fase preliminar das negociações, quando as pessoas ainda não estão adstritas a outro dever que não seja o neminem laedere, origina a responsabilidade contratual29

Na visão de António Manuel Menezes Cordeiro, o comportamento das pessoas deve respeitar um conjunto de deveres reconduzidos em um prisma juspositivo e uma ótica histórico-cultural. As verificações anteriores permitem detectar quais são esses deveres, nascidos na fase preliminar do negócio jurídico, mas exigíveis também em sua execução.30 

Partindo-se da análise do conteúdo da relação obrigacional complexa ou sistêmica, encontram-se inúmeros deveres de conduta, cujo pressuposto é a necessidade de agir de acordo com a boa-fé. Tais deveres de conduta são designados como deveres acessórios, laterais ou correlatos31

O princípio da boa-fé objetiva torna-se um verdadeiro viabilizador da operação de seguro; por tal motivo, é indissociável desse instituto, eis que a assimetria de informações por parte do segurador em relação ao segurado só é mitigada em razão do respeito a tal princípio, tanto na formação do contrato, quanto em sua execução. 

Em relação ao contrato de seguro, bem aponta Abel B. Beiga Copo, ao mencionar que se trata de um contrato de boa fé em que o segurador e o segurado devem ser leais um com o outro.32 

Como lecionado por Francisco Galiza, as informações, em se tratando do mercado securitário, não são perfeitamente conhecidas por todos os agentes econômicos envolvidos, ou seja, não são simétricas. Há o risco de deformação dos contratos, quando surgem alterações de comportamento do segurado após a assinatura dos instrumentos, pelo que o agente segurador terá extrema dificuldade em controlar perfeitamente essas mudanças, fato que só depende do segurado e de seu padrão moral. Tem-se aqui estabelecido um conceito importante, qual seja, o de perigo moral.33 

Nesse sentido, Maria Luisa Muñoz Paredes também relata ser o contrato de seguro um exemplo muito vivo de assimetria informacional na fase precontratualaponta o artigo 10 da Ley del Contrato de Seguro de España34 como principal recurso legal para compensar a assimetria informativo do segurador.35 

Outro ponto passível de exame é a dificuldade da seguradora de definir, com acuidade, o preço do seguro a partir do perfil de quem irá contratar o seguro, pois, enquanto o seguro é calculado pela sinistralidade média de todos os segurados, o cliente que prioritariamente irá comprar o seguro é aquele que possui as maiores taxas de risco e, em consequência, maiores taxas de sinistralidade.36 

Desse modo, ao se insculpir o princípio da boa-fé objetiva nos contratos de seguro, de modo a poder ser observado pelo agente econômico segurador, pelo segurado e, de igual forma, pela mutualidade, está-se a reduzir os custos de transação, eis que as informações transmitidas, presumida a boa-fé, são a referência de avaliação do risco, baseando-se o agente econômico nessas informações para precificar o prêmio a ser adimplido; é, portanto, o princípio da boa-fé ferramenta imprescindível para a redução de custos ao segurado/consumidor, razão pela qual, sua não observância deve lhe render penalidades contratuais.  

Considera-se, nessa perspectiva, importante o contributo de Ilan Goldberg, ao mencionar que não se controverte quanto à importância da boa-fé no contrato de seguro, seja no âmbito de sua formação, execução, ou até mesmo posteriormente. A verdade é que a boa-fé exerce função relevantíssima no relacionamento entre o segurado e a seguradora, já que é, com base nas informações prestadas por aquele, que esta cotará o risco a ser por ela aceito ou não, ensejando, conforme o caso, o estabelecimento do contrato. E, justamente, por tal motivo, que as informações prestadas pelo proponente devem ser transparentes, claras, a fim de que a seguradora, após celebrado o contrato, não venha a ser surpreendida em razão de dados que, caso lhe tivessem sido oportunamente informados, repercutiriam, eventualmente ou não, na realização do negócio jurídico, ou na cotação de um prêmio em patamares diferenciados, Da mesma maneira, acrescenta o autor, as informações atinentes à cobertura precisam ser claramente disponibilizadas para que o segurado saiba, exatamente, as garantias que está adquirindo. A clareza, a correição e a lealdade são uma via de mão dupla: está-se a falar em cooperação. Os problemas surgem exatamente quando interpretações distorcidas diminuem a relevância e a densidade que a boa-fé ocupa no seio da formação do contrato de seguro.37 

No caso em exame, o conceito de custo de transação38, em consonância com suas distintas espécies, é importantíssimo para uma análise mais precisa, na hipótese de quebra contratual, motivada, por exemplo, por exceção de contrato não cumprido, ou resolução por onerosidade excessiva, eis que ele é suporte para a verificação da incidência das normas adequadas, para a verificação de simples descumprimento contratual ou da necessidade de revisão de cláusulas contratuais que envolvam as obrigações da avença, em razão do novo cenário que se apresente, sempre se analisando as questões de forma recíproca. 

Assim, o princípio da boa-fé é o verdadeiro viabilizador econômico do contrato de seguro, pois não seria factível que uma seguradora contratasse investigadores para analisar, uma a uma, todas as informações prestadas pelos milhares de possíveis contratantes, tampouco, razoável contratar um investigador para cada possível contrato a ser firmado. É de se perguntar quem pagaria os custos atrelados a essas exigências, e mesmo sobre a viabilidade econômico-financeira em dar continuidade do negócio. Sob essa ótica, pretensamente protecionista aos interesses do segurado, seria atendida a função social a que se destina o seguro.39 

As conclusões sobre a inviabilidade de tais procedimentos, mutatis mutandis, são muito bem percebidas em estudo correlato, que pode servir de paradigma para a situação em concreto, desenvolvido por Fabiano Koff Coulon e Ely José de Mattos. Os autores referem que a possibilidade de diluição dos custos dos acidentes de consumo também pode apresentar outras consequências, além do denominado efeito distributivo, tais como: (a) o aumento do preço dos produtos, ao refletir também o custo dos acidentes, incrementaria a informação do consumidor, na medida em que ela ajuda a evidenciar o custo real desses produtos e cria incentivos ao fornecedor para agregar advertências acerca de sua utilização; (b) uma queda no consumo dos produtos potencialmente perigosos, devido ao aumento de preço, o que significaria também uma queda na probabilidade de efetiva ocorrência de eventos danosos; (c) a constituição de um fundo para as vítimas de eventos danosos, pois a quantia adicional incorporada ao preço do produto corresponderia a um fundo, a ser utilizado para compensá-las, de forma direta ou para contratar um seguro de responsabilidade civil por parte dos fornecedores.40 

4. A Conectividade como elemento de Diminuição da Assimetria Informacional e seu Conteúdo Probatório 

Diante do contexto tradicional de contrato de seguro, viabilizado pelo princípio da boa-fé na atenuação de assimetrias informacionais, se percebe um contexto totalmente novo, eis que a obtenção da informação real se dá de um modelo inédito ao agente segurador, que terá condições de executar o contrato de modo muito mais próximo à verdade dos fatos, bem como se desincumbirá de seu ônus probatório de modo muito mais eficiente, conforme legislação processual vigente.41 

Outro ponto importante a se abordar é o atingimento na essência da função social do contrato, elemento positivado em nosso Código Civil, especialmente, em seu cárater extrapartes42.  

A possiblidade de verificação de informações antes inacessíveis, levará o usuário/segurado, sem dúvida, a uma condução do veículo mais segura, provocando menos sinistros e, via de consequência, menos danos a toda a sociedade. 

Considerações finais 

De se constatar que a técnica de gestão de riscos do seguro tem como racionalidade a utilização de dados pretéritos para a mensuração de probabilidade de ocorrência do fato gerador de adimplemento de obrigação – o chamado sinistro. As companhias seguradoras que são entes especializados nessa gestão, se organizam de forma empresarial buscando sempre a maior eficiência possível, qual seja, o cumprimento das obrigações referentes aos sinistros mediante o prévio pagamento de prêmios que formem o fundo mutual. 

Todavia, nossa sociedade tem passado por transformações muito aceleradas. Diversos são os movimentos disruptivos, que, de certa forma, não havendo mais espaço para a mensuração de alguns riscos com base em eventos passados, como se dispõe a técnica do seguro. 

Certamente, o maior desafio da indústria do seguro é a sua preparação para o suporte de gestão de riscos previsíveis, cujo auxílio da tecnologia, especialmente a conectividade se mostra imprescindível. 

As companhias de seguros oferecem produtos baseados em uso e comportamento há anos com base em dados de dispositivos adicionais ou aplicativos móveis. Esta é uma área de produtos em rápido crescimento, uma vez que se prevê que o mercado UBI valha mais de US$ 105 bilhões em 2027, um aumento de 23,61% ao ano. A melhor posição nesta área é alcançada por empresas que começaram cedo a investir em tecnologia telemática e agora podem se orgulhar de produtos telemáticos bem desenvolvidos. No entanto, ao mesmo tempo, as empresas que consideraram a telemática uma tendência passageira e, portanto, não investiram nela perderam uma quantidade muito grande de participação de mercado.43 

Diante de tal escolha, players que não acompanharam o processo de digitalização precisam recuperar o atraso para acompanhar a concorrência. De acordo com a Swiss Re, com 20.000 sinistros atendidos por ano, a economia média após a implementação das tecnologias acima foi de 10 a 30 dólares por sinistro. A telemática também ajuda a conter a chamada inflação de sinistros. Veículos cada vez mais avançados são equipados com componentes complexos, cuja substituição pode ser cara. Felizmente, a seguradora de hoje tem a capacidade de criar sua própria estratégia com base na mudança de custo de peças de reposição e histórico de danos para os principais modelos de carros. Isso permite que eles desenvolvam novos preços que incluem custos de compensação inflacionados.44 

A análise de fatos pretéritos como técnica atuarial nos trouxe até aqui, mas, certamente, para que mantenhamos o contrato de seguro – atual – tanto como instrumento jurídico, quanto econômico, novos arranjos e técnicas deverão ser desenvolvidos, posto que a as mudanças da sociedade se dão em um caráter intenso e de transformação muito radical, refletindo uma realidade completamente diferente, mesmo quando estamos falando de pequenos lapsos temporais. 

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